Maria de Lurdes Veiga
“Nasci em Lisboa na maternidade Alfredo da Costa. Vivi lá até os 14 anos com os meus pais, eles eram da Semitela mas foram para Lisboa servir. Nasci com uma doença rara e os meus pais, quando eu tinha meio ano, deram conta que eu tinha algum problema porque não conseguia sentar-me como as outras crianças, apenas conseguia se estivesse rodeada de almofadas.
À medida que crescia os meus pais andavam comigo de médico em médico para me tratarem, até que fui para o centro de reabilitação de Alcoitão com os meus 6 anos. Lá eu fazia piscina, ginástica, massagens, tudo para tentar melhorar da minha doença. Eu conseguia andar, mas os meus joelhos batiam um contra o outro porque já tinha falta de força na coluna e só entre os 7 e os 10 anos parti a perna esquerda 3 vezes, sendo que aos 10 anos deixei de andar mesmo. A cada 8 dias vinha para casa dos meus pais porque só ficava lá durante a semana, eles iam-me buscar. Lá também tinha escola e foi lá que fiz a minha 1ªclasse.
O meu pai faleceu quando eu tinha 10 anos, mas a minha mãe continuou a trabalhar em Lisboa. Fiz um ano a estudar em casa com uma explicadora e depois fui para a Liga Portuguesa de Deficientes Motores onde também só estava durante a semana e foi aí que fiz a 3ª e 4ªclasses. Por volta dos meus 13 anos e num fim de semana que era para a minha mãe me ir buscar ela não apareceu, e a diretora disse-me que a minha mãe era nova e tinha ido arranjar um namorado e me tinha abandonado, sem ser verdade. A minha mãe começou a ficar mal e andava sempre em médicos e hospitais e como ela não podia tomar conta de mim aos fins de semana eles tiveram de me arranjar um sítio para ficar.
Num fim de semana fui para casa de um casal que eu não conhecia, e eles tinham um chofer no colégio que me foi buscar à instituição e levar-me à casa. A moradia tinha 3 andares e não havia elevador e então ele subia comigo ao colo. A casa era pequena e simples e eu ficava apenas sentada numa cadeira, mas fui muito bem acolhida. No segundo fim de semana não tinha para onde ir e fiquei em casa dos pais do chofer, que ele disse que se responsabilizava por mim.
Nas duas semanas de férias da Páscoa o chofer foi levar-me a uma casa que acolhia pessoas sem lar chamada Mitra, tinha uns portões enormes, uma casa que parecia estar a cair uns homens vestidos com fato de macaco, era muito assustador e muito rígido. Foi muito complicado e passei muita fome lá, já tinha uma cadeira mas era normal e então ficava parada num sítio e não saía de lá. Apareceram duas senhoras da segurança social lá e disseram-me que a minha mãe estava internada e foi aí que soube que ela estava doente e tinha sido operada. Elas eram simpáticas e levaram-me a ver a minha mãe ao hospital. Pelo caminho perguntaram-me se eu estava bem e eu desabafei sobre tudo o que eu passava lá. Vi a minha mãe e fiz-me de forte, à frente dela não falei sobre nada disto. Ela estava mal e quase não se percebia a falar. Voltei para a Mitra e quando passaram os 18 dias o chofer veio-me buscar para o colégio novamente e acabei os estudos lá.
Os meus tios da Semitela foram buscar a minha mãe porque ela estava em estado terminal e ficou em casa deles duas semanas. Quando estava para partir, tinha eu 14 anos, a minha mãe aclamou por mim e por o meu tio antes de falecer e o meu tio só disse “Fica descansada que quem fica com a tua filha sou eu!”. Fiquei a viver com eles dos 14 aos 26 anos e por livre vontade fui para o lar das Abelhinhas em Vila de um Santo onde fiquei durante 12 anos. Gostava muito de lá estar, arranjei amigos e eles levavam-me a passear e ofereceram-me uma cadeira elétrica. Quando a tive, a Diretora mandava as funcionárias tratarem-me mal pois não gostava do facto de eu já ser mais independente. Eu contactei com a minha tia e ela falou com a Segurança Social e retiraram-me de lá e assim fui transferida para uma casa de família de acolhimento onde estive 12 anos. Ao fim de 3 anos também me começaram a tratar mal, a senhora era analfabeta, não se sabia desenrascar, porque nessa casa havia mais pessoas ao cuidado dela e enquanto as filhas estiveram lá, tratavam de tudo, mas as mesmas casaram e fiquei só eu a resolver tudo, desde medicação, ligar para os médicos, entre outras coisas. As pessoas começaram a falecer e fiquei só eu ao cuidado dela e ela pensando que eu não saía de lá começou a desleixar-se comigo, deixava-me sozinha para ir passear, escutava as minhas conversas ao telemóvel, tentava-me vestir o mais rápido possível, ou seja, não tinha cuidado comigo, por isso saí de lá, tratei de tudo com uma amiga minha, através de carro de praça. Fui até à Segurança Social e contei o meu caso, fiz uma queixa em março e em junho vim para Alvite, para o Centro Comunitário. Já estou aqui há 3 anos onde estou bem e sinto-me muito feliz, o que fiz já devia ter feito há mais tempo!”
16 de Setembro de 2020